
Em Portugal, uma prática ancestral recentemente renovada deu origem a vinhos únicos. Conheça tudo sobre o Vinho de Talha.
A elaboração de vinhos, como grande parte das bebidas fermentadas que conhecemos, surgiu há muitos anos. Ainda que os fundamentos do processo sejam os mesmos, a tecnologia e os materiais disponíveis alteram, com o passar dos anos, como elas são feitas.
Vinho de Talha: uma novidade antiga
Em seu início, os vinhos eram essencialmente fermentados e conservados em recipientes de barro chamados de ânforas, já que o vidro ou ainda não estava disponível ou não era empregado para este fim. Em Portugal, a estas ânforas chamam “talhas”, e são elas a ganharem cada vez mais atenção.
Por muito tempo relegadas e utilizadas para armazenar azeite de oliva, vinho já pronto e outros líquidos, as talhas voltam à tona em um momento que une necessidade de diferenciação e resgate de antigas tradições.
Em Portugal, o Alentejo era a região que tinha a maior tradição na elaboração destes vinhos, com mais de 2000 anos de história, e onde a talha experimenta seu ressurgimento, inclusive ganhando uma regulamentação específica, sobre a qual falaremos mais adiante.
Preparando e conservando as talhas
Novas ou muito antigas, às vezes com centenas de anos e passando de geração em geração, as talhas são potes de barro que permitem a fermentação do vinho e armazenamento dele e de outros líquidos.
Seu formato depende da região em que foi fabricada e da experiência do oleiro. Em tamanho, é raro que ultrapassem os dois metros de altura e não podem conter mais que dois mil litros. Poroso, o barro necessita de alguma impermeabilização em seu interior, feita por meio da “pesga”, um revestimento elaborado com resina de pinheiro que pode durar por cerca de 10 anos após sua aplicação e que passa algum tipo de aroma e sabor ao vinho.
Além disso, as talhas contam com um pequeno orifício a cerca de 30 centímetros acima de sua base, tampado por uma rolha, por onde posteriormente o vinho será retirado.
Barro, uva e nada - ou pouca coisa - mais
A receita do vinho de talha não poderia ser mais simples. As uvas chegam à vinícola depois de colhidas, são esmagadas e são colocadas dentro das talhas para que se inicie a fermentação. O engaço pode ou não fazer parte da vinificação, à escolha do produtor. Na Lusovini, a opção da enóloga Sónia Martins foi fazer a fermentação de tudo junto, polpa, pele, sementes e grainhas.
Tintos ou brancos, o processo é o mesmo. Uma vez dentro das talhas, as uvas iniciam o processo de fermentação, que dura cerca de 15 dias. Sem controle algum de temperatura, as talhas são armazenadas em locais mais frios ou mesmo molhadas por fora para conter o calor.
Durante a fermentação, o “chapéu” de peles, polpa e grainhas que se forma por cima do líquido deve ser quebrado de duas a três vezes por dia para evitar aumento da pressão interna e quebra da talha.
Ao fim da fermentação, este chapéu afunda e se deposita no fundo da talha, lá ficando até que o processo de elaboração do vinho termine. Quando chega o momento - no caso da Lusovini, em dois meses -, o líquido é drenado da ânfora por uma torneira colocada na rolha próxima à base. O “chapéu”, agora no fundo da talha, serve como filtro, fazendo com que o vinho saia límpido após um certo período.
A partir daí, o vinho pode ser consumido, engarrafado ou mantido em outra talha, agora totalmente limpa, até seu consumo ou envase.
A regulamentação do Vinho de Talha
Em 2010, a Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CRVA) decide criar um regulamento específico para os Vinhos de Talha. Lá estão as regiões autorizadas a elaborá-lo, o material permitido para as talhas e sua impermeabilização e, entre outros fatores, a necessidade de permanência da massa de polpa, pele e engaços dentro da talha até ao menos o dia 11 de novembro do mesmo ano da colheita.
À data, que marca o Dia de São Martinho, é realizada uma grande festa no Alentejo, onde todos os produtores abrem suas talhas para descobrir como se saiu o vinho que deles exigiu tanto esforço e conhecimento ancestral.
Tapada do Coronel Vinho de Talha, o branco “laranja” da Lusovini

A Lusovini, após adquirir a Quinta Sericaia, em Portalegre, na Serra de São Mamede, começou a experimentar a elaboração do “talha” nos velhos recipientes encontrados dentro da propriedade. A opção foi por elaborar um branco que, em alguns aspectos, se assemelha a um vinho laranja.
Feito com um field blend de uvas de vinhas velhas, com predominância de Arinto, Roupeiro e Antão Vaz, segue todos os preceitos da regulamentação da CRVA. Elaborado sem qualquer tipo de intervenção enológica, pode-se dizer que seja a expressão natural do terroir no qual se localiza, somado à influência da talha.
É um branco quase “laranja” pela similaridade tanto no processo de elaboração, muitas vezes também feito em ânforas, quanto na característica levemente oxidativa de ambos.
Apesar de não filtrado, o vinho é bastante límpido, de coloração amarelo-palha. Seu aroma evidencia o tipo de elaboração, com grande presença de frutos secos, especiarias e também notas terrosas. Em boca, é sólido, complexo e de grande acidez, com uma presença interessante de taninos não notados normalmente em brancos.
Em resumo, o Tapada do Coronel Vinho de Talha é um vinho único, em que suas 1100 garrafas se diferenciam, pela tradição, de um mundo de vinhos tecnológicos.